O beijo é uma prova de fogo.
Teste à compatibilidade, encontro que dispensa explicações. Podemos beijar sem amor, mas nunca amar sem beijar.
Beijar é muito melhor que sexo. O beijo comprova uma fusão que nem a relação sexual, por si só, alcança. Ele é o verdadeiro teste à compatibilidade, ao entendimento entre duas pessoas. Se não funcionar, então nada mais resultará.
Pode sempre querer-se menos, prazeres menores, menos exigentes. Mas o beijo vem lá de dentro, sem rédeas, e ou atravessa o corpo, como quem diz “apanhei-te”, ou não ultrapassará nunca a primeira camada da pele.
Já se inventaram muitas formas de beijar. Cada cultura tem a sua, à imagem do seu próprio conceito de intimidade. O beijo romântico também mudou ao sabor dos costumes, hoje, menos regrados, menos censurados. O beijo é, agora, um abraço entre lábios, línguas e permite-se viajar livremente pelo corpo. Podemos, é verdade, beijar por inércia, sem amor, mas jamais poderemos amar sem um beijo. Ele é a peça, o motor, o princípio e o fim desse mistério. O sustento ou a falência da nossa capacidade de nos intersectarmos com um outro.
Nasceram nos contos de fadas, com príncipes e princesas encantadas. Histórias fáceis, com fórmulas e beijos mágicos. Beijos que acordam de
sonos eternos e que selam com garantias de felicidade duas belas criaturas, condenadas a serem sempre jovens, belas e muito pouco reais. Nós, gente comum, podemos, de facto, encontrarmo-nos num beijo, confirmarmo-nos nele e, ainda assim, perdê-lo por razões supostamente menores: medo, cobardia, vaidade, insegurança, ambição, etc. Ao contrário das histórias de encantar, o beijo que nos resgata pode habitar numa boca insuspeita.
Além disso, os contos de fadas nunca foram justos com o género feminino. Com ou sem beijo da salvação, elas têm de esperar 100 anos pelo seu príncipe, sempre belas e frescas, enquanto ele viaja, se diverte... Depois, inadvertidamente, sem que esteja à espera, lá está ela, linda, a dormir, pronta para ser beijada e salva. Como um azar nunca vem só, antes de ter caído em coma, a princesa foi empregada de limpeza e sempre ao serviço de madrastas cruéis (outro papel ingrato atribuído ao sexo feminino). O desempenho do príncipe chega a ser patético, de tão mínimo: beijar uma bela e adormecida princesa... Que dificuldade!
Mas na opinião de Maria da Graça Saraiva, advogada, de 35 anos, são eles, os homens reais, quem “dorme” e quem ainda acredita em contos. De facto, não há registo de príncipes que tenham perdido tempo a dormir. “Só mesmo estes, de cá, se dão ao luxo de o fazer”, graceja.
“Desconfio que há homens que acreditam ser sapos, daqueles que a certa altura foram enfeitiçados por uma bruxa má e que esperam pela ‘tal’, para desfazer o encanto. Suspeito que estão convencidos de que um dia ela virá, pelo seu próprio pé, e reconhecerá um homem muito capaz. Nesse dia serão os heróis da sua história.”
Os homens tomam a felicidade por adquirida. Alguns convencem-se mesmo que um dia serão salvos das suas próprias limitações, medos e inseguranças e que, por detrás do “Monstro”, a “Bela” não só verá o príncipe como cairá de amores por ele. Talvez seja ao contrário. Talvez ele carregue do lado de fora o seu melhor, aquilo que denuncia essa esperança, quase ingénua. Lá dentro adensam-se o comodismo e o jeito tosco de se dar. E o beijo que julga ser a salvação, talvez seja o da perdição. Os contos de fadas ignoram amores não correspondidos e finais como: ... e não ficaram juntos para sempre.
Maria da Graça rebate. “Não acredito em batráquios nem em princesinhas altruístas. Tenho fé, apenas, nos homens e nas mulheres de carne e osso, cujas virtudes suplantam os vícios e acredito no beijo, humano, real. Ele é a passagem para um mistério qualquer, onde duas pessoas são possíveis, juntas.
Quando mais nada parece fazer sentido, o beijo é um encontro que prescinde de explicação. O nosso corpo não nos mente, mesmo que rasteire o outro. O sentir não se sujeita a muitas justificações. Sente e ponto. É puro!”
Poetas, pintores e artistas em geral sabem disso. Captam o beijo e confirmam esse poder. Beijar é criar e desvendar um código único, uma linguagem que dispensa palavras e, ainda que se escrevam tratados e se teste em laboratório a sua química, tal só é compreendido ali, nos lábios, na pele.
“Nunca fiz amor com A. sem antes nos beijarmos preguiçosamente”, confessa Maria da Graça. “Aquilo é já fazer amor. Depois (e não vale a pena discorrer sobre a natureza do amor), aquele ritual espontâneo, testemunhado pelo corpo todo, é prova bastante de que um insondável capital de afectos e sensações se funde, num encaixe perfeito. É um verdadeiro mistério que recuso sujeitar ao escrutínio da razão.”
Em segundos, é possível apontar razões mais sensatas para partilhar a intimidade de um beijo.
A arte imortalizou e sustenta o gesto, sempre, ou quase sempre, no seu melhor. Mas outro, ultrajante, ficou na história, para lembrar que a traição também pode confirmar-se nos lábios. O beijo de Judas. Esta arquitectura engendrada pelo destino remete para a inevitabilidade do sacrifício, para a fatalidade.
Cristo, sendo o Messias, teria mesmo de morrer na cruz, caso contrário não haveria ressurreição nem a confirmação da sua obra. Alguém teria de traí-lo e, nesse caso, Judas só fez o que havia a fazer. Entre os discípulos, foi ele, como podia ser outro qualquer. Mas porquê um beijo? Não bastaria apontar o dedo?
O beijo está conotado com a ternura, amizade, desejo e amor. É um “olá”, um “estou aqui” ou um “adeus”. Assinala uma ligação e é, nas suas várias formas, o gesto que espelha a natureza de uma relação.
Condescendendo à lógica do destino, então o beijo de Judas fez sempre parte do plano e, de certa forma, foi a sua melhor contribuição: o gatilho que desencadeou o processo que culminou na glória. Ainda assim, a história registou a traição e associou-a ao beijo, para que tenhamos presente que a lealdade é coisa que escapa aos sentidos.
E, entre homens e mulheres, esse nunca é um valor adquirido. Apesar do amor, da amizade, intimidade ou confiança, todas as surpresas são possíveis. O beijo liga, mas não é um fundo de garantia.
Por isso, os contos de fadas acabam sempre onde a história realmente começa, no “beijaram-se, casaram e foram felizes para sempre”.
O casamento religioso é, ainda, o esquema mais aproximado às histórias de encantar. A união é também selada com um beijo e assumida como eterna.
Não sabemos o que aconteceu à Cinderela, coitada, sem electrodomésticos, a cuidar da casa e dos (muitos) filhos, enquanto o príncipe caçava com os amigos. Mas sabemos que, hoje, qualquer mulher, com acesso a empregada doméstica, tecnologia de ponta, a mais aperfeiçoada cosmética e muito menos filhos, duvida, com frequência, de finais felizes. Muitas vezes, o beijo é uma aposta perdida e uma falsa promessa de felicidade eterna. É... foi... um momento.
Maria da Graça irrompe: “ Quando, hoje, o corpo é embalado e prescrito com receitas, fórmulas detalhadas e manuais de instruções, com vista a performances e resultados ideais, eu rendo-me à glória de um beijo. E, no entanto, o beijo começa e encerra uma entrega feliz, quase sempre fruto do acaso...”
Que seja então, pois enquanto o homo sapiens vive obcecado pela compreensão absoluta de tudo e pelo controlo, o toque dos lábios prova ainda que, felizmente, não somos apenas a orgulhosa espécie racional. Basta um beijo e...
http://sub.maxima.xl.pt/1103/intimidade/a03-00-00.shtml